ADEQUAÇÃO E INADEQUAÇÃO
A língua é um construto social que apresenta diversas variantes, sendo que a norma culta é apenas uma entre tantas outras. Normalmente é a variante que alcançou prestígio ao longo do tempo, nascida da tradição gramatical e literária que a fixou como a forma padrão de se escrever.
Já as outras variantes só são consideradas errôneas porque representam o falar de classes sociais historicamente marginalizadas ou discriminadas. O falar da elite erudita é o dominante por motivos sócioeconômicos e não porque exista um ideal de língua.
Isso significa que a norma culta é um imposição terrível e que devemos escrever do jeito que bem entendermos? Não, de forma alguma, todos temos que aprender a norma culta pois ela é um pré-requisito básico para a inserção das pessoas na sociedade, é a linguagem oficial, a linguagem dos livros técnicos e literários. Toda pessoa precisa conhecê-la para alcançar a emancipação cultural e cidadã. O combate ao preconceito linguístico não pressupõe o combate à norma padrão.
Mesmo porque é preciso que exista um padrão, é necessário que exista um modo de escrever que seja o mesmo em todo o país. Já imaginou se todo mundo usasse a variante que bem entendesse em documentos oficiais, por exemplo? Um certidão de óbito, poderia ser chamada de Atestado de Defunto, Carta para São Pedro, Diploma de Mortinho da Silva, etc. Seria um verdadeiro caos comunicativo.
Por isso é importante que a gente saiba utilizar a variante adequada para cada situação, se você está conversando com os seus colegas é mais do que natural utilizar uma linguagem mais despojada, gírias, expressões corriqueiras. Num contexto informal é muito melhor chamar um amigo para bater uma bola do que para jogar um ludopédio, seu amigo não vai entender que você está falando de futebol e você parecer um louco ou um pretensioso.
A situação muda radicalmente se você está numa faculdade e vai apresentar um trabalho acadêmico para o público. Neste caso dizer “boa noite a todos, darei início à apresentação” é muito mais adequado do que falar “Fala galera, vou começar essa bagaça”, pelo menos se você não quer ser reprovado na matéria que estiver cursando.
Como exemplo cito logo abaixo um depoimento à justiça em que o uso inadequado de uma variante causou problema na comunicação, a ponto de ter sido necessária uma tradução do que o réu disse:
Papo de malandro
Diante dos jurados cariocas, o réu deixa claro (graças à tradução de Dino Preti, professor da USP), que nada fez.
O que o malandro diz: “Seu doutor, o patuá é o seguinte: depois de um gelo da coitadinha, resolvi esquiar e caçar outra cabrocha. Plantado como um poste na quebrada da rua, veio uma pára-queda se abrindo. Eu dei a dica, ela bolou…chutei. Ela bronquiou, mas foi na despista, porque, vivaldina, tinha se adernado e visto que o cargueiro estava lhe comboiando. Morando na jogada, o Zezinho aqui ficou ao largo. Procurei engrupir o pagante, mas recebi um cataplum. Aí, dei-lhe um bico com o pisante na altura da dobradiça. Ele se coçou, sacou a máquina e queimou duas espoletas. Papai, rápido, virou pulga e fez Dunquerque.”
(Extraído do jornal Correio da Manhã, de 5/04/1959)
O que ele quer dizer:
“Senhor doutor, a conversa é a seguinte: depois que fui abandonado por minha companheira, resolvi procurar uma outra. Parado na esquina, aproximou-se uma morena faceira. Eu a olhei, ela correspondeu…eu insisti. Ela achou ruim, mas foi para disfarçar, porque, muito esperta, havia olhado de lado e vira que o seu companheiro a estava seguindo. Percebendo tudo, fiquei de longe. Procurei enganar o malandro, mas, inesperadamente, fui agredido. Aí, dei-lhe um chute na altura do joelho. Ele procurou a arma, sacou-a e deu dois tiros. Eu, rápido, pulei e fugi.”
(Trechos do livro A Gíria e Outros Temas, de Dino Preti)
Como se pode notar pelos dois textos acima, é preciso “traduzir” o depoimento do réu para que a gente consiga entendê-lo. A linguagem dele representa uma variante social que para nós hoje é completamente estranha. É o falar do malandro carioca da década de 50, um falar popular que hoje é mais esquisito e difícil que a norma culta.
Fica bem claro com este exemplo o porquê de uma norma padrão.